Navegando entre águas calmas e tempestades para se tornar um dos maiores nomes da vela mundial.
No princípio, a vela era apenas uma extensão do olhar. Ele não velejava para chegar a lugar algum, mas para estar lá, com o mar, as ondas e o vento. O jovem Torben Grael seguiu o avô como um garoto que persegue um sonho nascido no farol de Niterói, sem saber que um dia essa presença suave se tornaria sua identidade. As da Baía de Guanabara, no Rio Yacht Club, onde ele começava a navegar pareciam mais tranquilas na infância, mas continham a força inevitável do destino.
Crescendo entre cidades improváveis para marinheiros, como Belém, Uruguaiana, Brasília, Torben experimentava um país cujas fronteiras se estendiam mais do que sua imaginação de garoto podia entender. Mas foi em Brasília, no cerrado abrasador e distante do mar, que a competição tornou-se parte de seu mundo. O Lagoa Paranoá, com suas águas interiores e cursos irregulares, era o contrário do Atlântico livre e bravo que conhecia. Mesmo assim, tornou-se o palco do início, a arena onde seus triunfos eram forjados, aceitando o desafio da água doce e dos ventos inesperados.
Viaja Na época de sua adolescência, com seus 16 anos, viajava pouco para campeonatos internacionais, treinava e competia em sua terra natal na maior parte do ano. As dificuldades eram muitas, e tinha de se esforçar mais que seus adversários para alcançar o nível exigido. A pele, bronzeada do sol constante, era um símbolo de seu sacrifício diário para alcançar a glória em seu esporte. “E a gente viajava, assim, um pouco para fora do Brasil. Eu fui para dois mundiais juvenis, um na Argentina, em 76, e um em San Diego, na Califórnia, em 78, que a gente ganhou. Eu e o Eduardo Mascarenhas, lá de Brasília, também.”
A campanha para os Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984, foi tudo menos ideal: Torben e a tripulação chegaram aos EUA sem patrocinadores de peso, com um equipamento longe do ideal e a falta de suporte logístico que, para equipes estrangeiras, era dado como certo. Competir contra os melhores do mundo em um esporte que ainda engatinhava no Brasil exigia uma garra que ele encontrou na dureza da infância itinerante e no gosto pelo improviso. Los Angeles era calorosa, suas águas intensamente frias, e os ventos do Pacífico lembravam-lhe que ali a natureza ainda era soberana.
Nos prédios da UCLA, faculdade americana que hospeda os atletas do mundo afora, havia uma ala designada para a delegação brasileira e, dentro dessa área, quartos específicos para os velejadores. Os quartos tinham beliches, e sobre cada cama uma delas, um desenho de uma criança.
Ao escolher sua cama, Torben reparou em um desses desenhos, que trazia a frase “Inner Strength”, algo como Força Interior — um nome que lembrava muito Força Oculta, nome de seu barco. No desenho, havia atletas em poses de ginástica formando as letras, compondo a frase que, segundo ele, ficou guardada em sua memória como uma coincidência curiosa e significativa. “Nessa cama que eu peguei, tinha um desenho escrito Inner Strength, que é parecido com Força Oculta, né? Força Interior, feito com vários atletas fazendo ginástica e fazendo a escrita, que eu tenho guardado até hoje.”
Nas longas e lentas manhãs que precediam as competições, ele e os outros velejadores despertavam com o brilho do sol californiano que, já nas primeiras horas, tinha a intensidade de uma fogueira. Torben ajustava as velas, checava o casco, afinava o leme, enquanto sentia a expectativa nervosa de alguém que atravessou um continente para provar que merecia estar ali. A prata, conquistada ali, foi mais do que uma vitória: era um presságio. Naquele momento, o Brasil começava a perceber que o mar podia ser também uma arena de medalhas, e Torben tornou-se o rosto desse sonho.
Quatro anos depois, em Seul, a sensação era diferente. Os Jogos Olímpicos de 1988 foram grandiosos, organizados como uma ópera asiática na qual os detalhes e a cerimônia eram uma parte essencial da experiência. Torben e sua equipe chegaram mais preparados, com um nível de treino que se alinhava com o dos países que dominavam a vela. Mas a pressão do campeonato e o alto nível dos adversários fizeram daquela medalha de bronze uma batalha em águas orientais. Os dias em Seul eram longos e úmidos, e ele se lembraria por muito tempo da brisa densa, quase palpável, que soprava sobre a baía de Pusan e lhe trazia a estranha sensação de estar entre um continente e outro, entre a vitória e a derrota, em um limiar onde qualquer erro poderia ser fatal.
A brisa de Pusan, sempre forte e irregular, parecia brincar com os nervos dos competidores. Nas longas jornadas em alto-mar, cada vez mais como um jogo de paciência, de observação. A cada regata a pressão era como o vento contrário, dificultando até mesmo o que Torben sabia fazer com os olhos fechados. A serenidade de Torben era conhecida, mas ali, entre as águas do Pacífico e a vastidão desconhecida da Ásia, ele teve de aprender a lidar com a incerteza e a confiança na equipe. O bronze veio como uma conquista amarga, mais lembrada pelo esforço incessante do que pelo resultado em si. Mas era o aprendizado do que viria depois.
Foi nas olimpíadas de Atlanta, nos Estados Unidos, oito anos depois, que ele e Marcelo Ferreira, seu fiel parceiro, mostraram ao mundo o que significa uma verdadeira estratégia de vitória. Ao contrário de Los Angeles e Seul, as águas de Savannah, em Atlanta, tinham uma placidez incomum, mas o cenário, pacífico apenas na aparência, escondia os ventos traiçoeiros e a fervura de uma final olímpica. Naquela última regata, Torben e Marcelo estavam prestes a entrar para a história, com o ouro ao alcance da mão. Eles sabiam, porém, que o australiano rival poderia acabar com seus planos, o que exigiu deles uma habilidade de controle emocional rara.
O australiano precisava vencer para garantir seu título, mas Torben havia se preparado meticulosamente para uma partida que mais parecia um jogo de xadrez em alto-mar. Sem pressa, ele encurralou o adversário com manobras precisas e uma frieza de quem tem o mar como casa. Quando o australiano queimou a largada, tudo se encaixou: a medalha de ouro finalmente brilhou, carregando em si toda a trajetória de improviso e de persistência que Torben cultivava desde os tempos do Vida Bandida. O ouro foi não só um triunfo, mas uma confirmação de que o oceano e Torben eram parceiros de destino.
Seu barco, o barco de um campeão olímpico detinha da época dos dormitórios da UCLA, em seu casco, o nome que descrevia em mistério a rotina que viviam – uma vida de idas e vindas, de aeroportos, de sacrifícios e desafios longe de casa, como um bando de foras da lei marinhos. As canções de Lobão ainda ecoavam na memória de Torben, e a expressão “Vida Bandida” surgiu naturalmente, sintetizando o espírito daquele estilo de vida que, para o mundo lá fora, podia parecer imprudente e desmedido. Era como viver de forma quase clandestina, fora das amarras da vida comum, com a liberdade irrestrita dos elementos.
Nas olimpíadas de Sydney, 2000, era diferente. A Austrália, com suas praias selvagens e águas cristalinas, parecia um reflexo mais fiel do que ele havia deixado no Brasil. Mas agora havia uma experiência consolidada, uma pressão de quem era conhecido, reconhecido, esperado. Torben e Marcelo estavam em sua terceira campanha olímpica juntos, já não eram os jovens ousados dos primeiros tempos, mas ainda tinham o frescor de quem não perdera a curiosidade pelo novo. A prata que veio ali, na baía de Sydney, foi comemorada como se fosse o ouro. Era o desfecho de uma jornada compartilhada, um troféu para a parceria.
Por fim, nas olimpíadas de Atenas, 2004, selou a história. Ao competir nas águas gregas, Torben estava em um território mítico, onde a civilização ocidental nascia e onde os Jogos Olímpicos haviam sido criados. Ele navegava por mares onde heróis imaginários haviam velejado antes, e cada regata parecia um retorno às origens do espírito olímpico. As águas de Atenas tinham uma clareza quase divina, e ele velejava como um homem que conhece os mistérios do mar, mas que nunca deixaria de aprender com ele.
A vitória em Atenas, seu segundo ouro, coroou a trajetória de um homem que encontrara o significado de sua vida nas ondas, nos ventos e na imensidão azul. Ao se tornar um dos maiores velejadores do mundo, Torben Grael deixou claro que seu talento não era só técnico, mas uma manifestação quase espiritual do que o mar lhe ensinara desde a infância. Ele era, afinal, como o próprio mar: imensurável, persistente, desafiador. Torben é o velejador que atravessa mares, mas é também o homem que, ao navegar, nos lembra da profundidade que a vida pode ter quando vivida com coragem e entrega total.