No limite

Provas de 50, 80, 100 e 160 km e competições de até 24 horas. Como os ultramaratonistas exploram os limites do corpo e da mente em jornadas épicas pelo desconhecido

Todo corredor já deve ter ouvido falar do soldado ateniense Pheidippides. Diz a lenda que, em 490 a.C, quando os gregos derrotaram os persas em uma batalha na planície de Maratona, o general Milcíades destacou um soldado de sua tropa para que retornasse a Atenas a fim de comunicar a vitória ao seu povo. Pheidippides foi o escolhido pela sua condição atlética. Após correr entre o local da batalha e Atenas – um percurso de aproximadamente 40 quilômetros, em terreno acidentado – Pheidippides só teve forças para dar a notícia e cair morto. Seu último suspiro foi ecoado ao cruzar finalmente os portões de Atenas: “Nós vencemos”. 

O espírito do soldado e atleta Pheidippides vive não somente nas corridas de 42 quilômetros, mas também em distâncias que desafiam a capacidade física e mental dos corredores. Os ultramaratonistas,como são chamados os atletas de corridas de  50, 80, 100 e 160 km e até mesmo de 24 horas são capazes de colocar seus limites físicos e mentais acima de medos ou quaisquer outros sentimentos que possam impedir este tipo de esporte. Para o professor de Educação Física István Dobransky, docente da Faculdade de Educação Física da PUC-Campinas, “quem está acostumado a correr provas de longa distância, como a maratona de 42 quilômetros, teoricamente está apto a enfrentar percursos maiores”, contou o professor.

No entanto, segundo ele, as ultramaratonas podem trazer riscos à saúde do atleta, que precisa ultrapassar seus limites físicos para dar conta dos longos percursos. “A ultramaratona faz mal à saúde, porque é um exercício com volume e intensidade que tem que ser mantido por muito tempo”, afirma o professor. Esse tipo de atividade física exige do atleta, além do preparo físico, um estado mental que o mantenha disposto a cumprir os longos percursos. 

Desafios nas montanhas

Mount Baker é uma montanha de 3.286 quilômetros de altitude localizada no estado de Washington, nos Estados Unidos, a cerca de 50 quilômetros a leste da cidade de Bellingham. Frio, úmido e irregular, o local pode ser hostil até mesmo para uma leve caminhada, mas sua formação rochosa foi escolhida para sediar a primeira ultramaratona no mundo, a Mount Baker Marathon.

Em uma noite de agosto de 1911, enquanto a lua cheia iluminava o céu acima do noroeste pacífico, a população de Bellingham se preparava para um evento que mudaria para sempre a paisagem do esporte. A ideia de Arthur J. Craven, advogado e presidente do Mount Baker Club, mudou a realidade da cidade: realizar uma corrida até o cume do Monte Baker. Para ele, o desafio prometia não apenas testar o corpo dos corredores, mas também atrair olhares curiosos para uma região ainda em busca de reconhecimento.

A Câmara de Comércio de Bellingham, na busca por turistas e visibilidade, percebeu nesse desafio uma oportunidade de ouro para a cidade. A corrida que subiria as trilhas íngremes do Monte Baker seria mais do que uma competição, mas uma promessa de glória à cidade. O prêmio de US$150 atraiu cerca de 60 corredores.

O percurso foi cuidadosamente traçado pelos organizadores. A Rota 1 levaria os competidores em um trem por 44 milhas até Glacier, onde iniciariam uma jornada de 28 milhas por uma trilha entre árvores e colinas, culminando em um cume que de tirar o fôlego dos atletas. Em contraste, a Rota 2 exigiria coragem dos corredores, que atravessariam estradas irregulares até Heisler’s Ranch para iniciar a corrida de 32 milhas pela Deming Trail, uma rota mais longa, mas com a promessa de uma subida menos penosa. 

Na véspera da corrida, os competidores – todos homens – se reuniram para receber seus números da prova em uma cerimônia que parecia mais um ritual do que uma simples entrega de identificações. A atmosfera pulsava entre os atletas e os milhares de espectadores que se aglomeravam ao longo das ruas, ansiosos por ver a coragem dos corredores.

Às 22 horas, o disparo do revólver deu início ao espetáculo. Carros e trens se lançaram em direções opostas em uma corrida frenética pelo desconhecido. Enquanto os automóveis rugiam ao longo de estradas irregulares e os trens deslizavam por trilhos reluzentes, a aventura estava no ar. Harvey Edward Haggard, com apenas 19 anos, foi o primeiro a conquistar o cume. Ele enfrentou o vento gélido que soprava a mais de 70 milhas por hora. A figura frágil, quase etérea, mostrava que o verdadeiro espírito da corrida não estava apenas na velocidade, mas na determinação de ir além dos limites humanos. 

Enquanto isso, Joe Galbraith, um fazendeiro da região de Acme, estava em uma corrida contra o tempo dirigindo seu Ford Modelo T, chamado “Betsy”. O rugido do motor e o barulho das rodas contra a estrada irregular ecoavam como um grito de guerra. Galbraith, impulsionado pela memória de um pai que havia sido tragicamente assassinado, encontrou na corrida uma forma de honrar sua coragem. Cada curva na estrada era uma batalha um teste de fé em si mesmo.

Naquele evento, Mount Baker não foi apenas um cenário majestoso, mas tornou-se o protagonista na história das maratonas. Suas encostas, cobertas de neve e gelo, testaram a resistência dos corredores de uma forma que poucos podiam imaginar. A corrida não foi apenas uma competição, mas uma jornada que exigiu dos competidores força e resiliência em meio às adversidades. 

A partir desta prova, outras ultramaratonas passaram a desafiar os atletas em desertos, montanhas e florestas, testando os limites do corpo e da mente em jornadas de dias inteiros e centenas de quilômetros. Como se a lenda de Pheidippides tivesse se tornado um impulso intrínseco, uma busca pela essência indomável do ser humano.

Desertos e alpes

A Barkley Marathon é uma das provas de ultramaratona mais desafiadoras e misteriosas do mundo. A Badwater, na Califórnia e a Mont Blanc, na Europa, são provas de ultramaratonas conhecidas pelos desafios. Enquanto na de Barkley os corredores atravessam o desértico Vale da Morte, na de Mont Blanc os ultramaratonistas desbravam percursos vertiginosos nos alpes da França, Itália e Suíça. O desafio nas duas corridas não está apenas no terreno ou na distância, mas no confronto com o próprio eu. Para os atletas destas ultramaratonas, os limites físicos tornam-se secundários, quase triviais, já que verdadeiro teste está em não desistir. 

A lendária corrida de Barkley Marathon é muito mais do que um simples desafio de resistência. Realizada nas montanhas de Frozen Head, no estado do Tennessee, nos Estados Unidos, a ultramaratona é considerada uma das mais difíceis do mundo. Além da distância extrema de 100 milhas ou 160,934 quilômetros, o percurso intrincado e as regras não convencionais desafiam a lógica dos corredores. 

Os corredores correm por trilhas acidentadas e terrenos cobertos de vegetação densa, em um labirinto de obstáculos naturais e uma geografia traiçoeira. Além de fazer o percurso, eles têm que coletar páginas de um livro escondido em cada ponto de controle. A corrida torna-se, assim, uma tarefa que exige não apenas força física, mas também astúcia e estratégia. Os competidores têm 60 horas para completar o percurso, mas as probabilidades de cumprir essa meta são difíceis. O recorde de conclusão é de cerca de 52 horas e foi batido por Brett Maune, em um testemunho da resiliência e habilidade dos que conseguiram enfrentar as dificuldades da corrida. 

A seleção dos participantes é uma história à parte, já que o processo de inscrição na prova tem lá seus mistérios e dificuldades. Os organizadores, com um humor mordaz, dão poucas dicas sobre a rota e a necessidade de um mapa e uma bússola, desafiando os corredores a se prepararem para o desconhecido. Neste cenário rústico, onde a natureza se impõe e a solidão é palpável, a Barkley Marathon se transforma em um rito de passagem, um desafio que poucos ousam enfrentar e conseguem conquistar o percurso, criando uma mística ao redor de uma das provas mais temidas do mundo.

O primeiro brasileiro a se classificar para esta prova foi o Enrico Frigeri, de Jundiaí, no interior de São Paulo. Decidido a participar da maratona de Barkley em 2019, ele quase viu seu sonho terminar quando foi atropelado, no dia 20 de outubro. Faltando apenas 20 dias para o Campeonato Brasileiro de Atletismo e dois meses para a Barkley, Frigeri sofreu uma hemorragia interna após ser atropelado, o que o levou à UTI. Foram 15 dias hospitalizado, em um processo lento de recuperação. 

O atleta conseguiu voltar a andar no meio de dezembro e até janeiro ele dedicou seus dias a um intenso treinamento. Quando finalmente chegou o dia da prova nos Estados Unidos, Frigeri não estava em condições ideais para correr aquele percurso, pois não tinha conseguido atingir a forma física que desejava. Mesmo assim, ele encarou a viagem e o desafio.

Durante a Barkley, o maratonista enfrentou várias dificuldades, mas, mesmo assim, conseguiu completar um looping, que são cerca de 32km, dos cinco existentes na prova, que nenhum brasileiro havia conseguido até então. Mas o ritmo acelerado exigido para a prova era um desafio que ele não conseguia acompanhar em sua atual condição. 

Com a esperança renovada, Frigeri planeja retornar a Barkley em 2025. “Já estou me preparando para a prova”, diz. Ele conta com o apoio da família, que já se acostumou às suas viagens. “É uma guerra antes de competir, mas agora eles [seus pais] já entendem um pouco mais”, explica. Seu irmão também é atleta e faz corrida de aventura. “A gente compete na mesma equipe e assim um cuida do outro”. 

O ultramaratonista Pedro Cianfarani, de São Bernardo do Campo, no estado de São Paulo, foi o segundo brasileiro a participar da Barkley Marathon. Quando decidiu enfrentar a Barkley, ele não apenas intensificou seus treinos, mas também buscou informações sobre o local da prova. “Foi um trabalho de detetive”, conta. Na época, ele assistiu muitos vídeos sobre a maratona e o percurso para se precaver contra imprevistos. “Dificilmente a organização [da maratona] dá alguma dica”, afirma.

Cianfarani explica que a Barkley Marathon é rodeada de segredos e desafios que vão além da corrida em si, criando uma experiência única e complexa. Segundo ele, os atletas são monitorados o tempo todo pela organização, o que faz com que qualquer descuido com informações sobre a prova possa trazer consequências ao corredor. “Eu compartilhei uma foto de um quadro que fiz com recordações da corrida, incluindo um mapa borrado, e fui imediatamente contatado e advertido”, explica. “A organização me chamou e pediu para apagar a foto, porque, ao postá-la, eu mostrei o mapa”.

Participar desta maratona exige do atleta muito mais do que condicionamento físico. Uma das provas a ser vencida é ter a inscrição aceita pelo organizador da maratona, Lazarus Lake, conhecido como uma das lendas de corridas de resistência. Para Cianfarani, não basta conseguir o e-mail do organizador para solicitar a inscrição. “O mais importante é saber o momento exato de fazer o contato”, afirma. “Você tem que descobrir quando mandar o e-mail e o que você vai pedir para mandar.” Se o e-mail for enviado fora do timing correto, explica o maratonista, o participante será automaticamente eliminado da prova. 

Outra característica desta ultramaratona é o destaque no convite oficial – Minhas Condolências – que descreve os riscos enfrentados pelo atleta, como frio intenso e perigo de vida. “Recebi a confirmação da minha participação durante uma viagem de fim de ano”, diz ele. “Era a semana entre Natal e fim de ano e eu estava no Sul de Minas. Tive que dar um jeito, fiz o negócio, reconheci firma e mandei [os documentos] para uma transportadora.”

Na sua opinião, esses detalhes fazem parte da “beleza da prova”, assim como a dificuldade em se preparar e ser aceito para a maratona. Durante seu treinamento para a Barkley, ele se machucou. Mesmo com o tendão lesionado, ele viajou para os Estados Unidos e participou da ultramaratona.  Para ele, desafios e o controle rigoroso da organização do evento criam uma atmosfera única que torna a Barkley Marathon mais do que uma simples corrida: é um teste de determinação e resiliência em todas as etapas.

Travessia a nado

O Canal da Mancha, um corredor de águas escuras e imprevisíveis, se estende por 34 quilômetros entre o sul da Inglaterra e o norte da França. Ao longo dos séculos, suas margens testemunharam muito mais do que a simples divisão entre Grã-Bretanha e Europa continental, pois ali se desenrolaram disputas territoriais acirradas, pactos comerciais e feitos de coragem extraordinária. Aqueles que ousaram atravessar suas águas ou dominar as rotas sabiam que o estreito era mais do que uma passagem, mas um campo onde se esculpiam as histórias de povos e impérios.

Além de seu profundo significado histórico e geológico, permeado por conflitos que refletem até os dias de hoje, o Canal da Mancha emergiu, ao longo dos séculos, como um desafiador cenário para atletas corajosos e destemidos, sendo vista como uma das travessias mais reverenciadas no mundo dos esportes de ultra resistência.

O primeiro a desbravar as águas desafiadoras do Canal da Mancha foi o capitão Matthew Webb, em 1875. Ele nadou do território inglês em direção à França, enfrentando temperaturas assustadoramente frias e correntes traiçoeiras. Sua audaciosa façanha não apenas conquistou o estreito, mas também se firmou como um marco inapagável na história dos desafios humanos. Mais tarde, em 1926, a nadadora americana Gertrude Ederle escreveu seu nome na história ao se tornar a primeira mulher a completar essa travessia, quebrando barreiras e provando que a força do espírito humano não conhece limites.

No Brasil, 40 atletas já se aventuraram a fazer a travessia do Canal da Mancha. Desses, 30 foram homens e, 10, mulheres. Uma delas é a Mariana Chevalier Santos, que concluiu a prova em 2020, com apenas 16 anos, em sua primeira tentativa. Segundo estatísticas da Channel Swimming Association (CSA), responsável pela organização e regulamentação da travessia, apenas 8% dos inscritos conseguiram finalizar a prova. De janeiro a outubro deste ano, 20 terminaram o desafio. 

Mariana iniciou sua jornada em provas de longa distância nas piscinas, pelo Clube Curitibano, em Curitiba e, com o tempo, enfrentou as desafiadoras maratonas aquáticas. Aos 15 anos, em 2019, por curiosidade, decidiu se embrenhar na tradicional Travessia da Ilha do Mel, situada em uma famosa ilha paranaense, cuja extensão de 23 quilômetros testou sua determinação. Para sua alegria, ela não apenas participou, mas foi a vitoriosa na categoria geral feminina.

Esse feito atraiu a atenção de um colega de clube, Joel Kriger — o brasileiro mais velho a conquistar o cume do Monte Everest — que a convidou a se unir a ele em sua ousada tentativa de atravessar o Canal da Mancha e a auxiliar em sua preparação: “Quando você vai para a travessia (do Canal da Mancha), você é autorizado a ter alguém para nadar um pouco com você, uma ou duas vezes, uns minutos ali, para te ajudar a dar ritmo na prova, então eu fui para ajudar. Não aconteceu a travessia, porque a organização tem que permitir; se o tempo e a correnteza não forem favoráveis, você perde a chance e volta para casa, é a regra do jogo, é por segurança”, nos contou Mariana.

A partir desse momento, a nadadora decidiu que queria se preparar para a travessia. No entanto, o verdadeiro desafio não estava apenas na distância reta de 33 quilômetros; na prática, devido à correnteza, a quilometragem aumentava consideravelmente, podendo chegar a quase 50 quilômetros. “A experiência conta, conta demais. O treino físico conta, conta demais. Mas, por mais que a gente não goste muito de admitir, tem a sorte também nessas horas, coisa que o Joel não teve quando tentou atravessar”, explicou.

A atleta, que não tinha muito costume e experiência em nadar no mar, revelou que frequentemente treinava em uma piscina desaquecida do Curitibano, para acostumar seu corpo às exigências da água. Contudo, ela admitiu que essa preparação não era suficiente, e a diferença se tornava evidente no momento das provas. “Por mais que a gente tentasse, era difícil simular alguma coisa na piscina, como tomar um suplemento alimentar e escutar as instruções do técnico enquanto continuava nadando”, recorda. 

Já no Canal da Mancha, a nadadora enfrentou outro problema: os animais marinhos. “Vi um leão marinho em certa hora, mas graças a Deus ele estava bem longe de mim”, afirma. Outro temor de Mariana era a presença de água-viva, sempre em abundância no Canal da Mancha. “Sou alérgica e elas eram enormes”, recorda. “Se eu ficasse de pé na água, o tentáculo dela era maior do que eu”. 

Mariana, ainda com apenas 16 anos, compartilhou que solicitou à organização da travessia que a deixassem nadar durante o dia. A escuridão da noite a deixava inquieta, não apenas pela dificuldade de enxergar, mas também pelo vento cortante e o frio intenso. Com experiências anteriores de hipotermia em travessias, ela estava ciente das adversidades que teria de enfrentar. Por isso, precisou ajustar sua dieta, buscando aumentar a massa muscular e a gordura, com o objetivo de proteger seu corpo das duras exigências do Canal da Mancha.

Além de todas as preparações pré-prova necessárias para suportar a travessia que durou quase 12 horas, Mariana precisou contratar um seguro de vida devido aos riscos envolvidos. “Esse foi o momento em que minha mãe deu um sinal. Ela me perguntou: Vamos pensar, você quer mesmo isso?. Eu respondi: “Não, mãe, tá tranquilo, é só burocracia, nem vai precisar usar”, relembra Mariana. Mesmo sabendo que não era algo tranquilo, seus pais sempre a incentivaram e apoiaram nos treinos.

Ela contou que herdou o espírito aventureiro do pai e o rosto da mãe, que, apesar de temer as provas que Mariana disputava, nunca deixou de ajudá-la. Ela estava sempre presente, levando-a aos treinos, auxiliando nas dietas, nos suplementos e oferecendo suporte no dia a dia. Mariana destaca que seus pais têm maneiras bem diferentes de demonstrar apoio e incentivo, mas afirma que jamais poderia reclamar da dedicação deles ao longo de sua jornada.

Mortes na água

Outro desafio para os maratonistas aquáticos que fazem a travessia do Canal da Mancha é a baixa temperatura da água. Quando Mariana conseguiu finalizar a prova, a temperatura estava entre 7 e 16 graus Celsius, valores significativamente abaixo dos 25 a 28 graus Celsius das piscinas oficiais da World Aquatics, entidade reconhecida pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) como responsável por administrar competições internacionais nos desportos aquáticos. 

O frio cortante das águas do Canal da Mancha já foi responsável pela morte de diversos atletas de ultramaratonas, incluindo a brasileira Renata Câmara Agondi, experiente nadadora de maratonas aquáticas, que morreu aos 25 anos em 23 de agosto de 1988.

Segundo a técnica da nadadora, Judith Russo, houve um erro na pilotagem do barco de apoio que comprometeu o planejamento de toda a equipe. O capitão, por um descuido, seguiu uma rota paralela à costa, impossibilitando que Renata fosse acompanhada de perto e recebesse o suporte necessário. 

Após mais de dez horas imersa nas águas gélidas, a equipe, temendo por sua segurança, tentou resgatá-la. Indignada pela interrupção de sua prova, Renata recusou a ajuda e continuou a nadar, até que as consequências físicas do esforço desmedido resultaram em um trágico desfecho. Inspirado por sua história, Marcelo Teixeira, atual presidente do Santos Futebol Clube, decidiu escrever Revolution 9, uma biografia que homenageia a nadadora. 

Memórias das águas

Desde a Antiguidade, o Canal da Mancha já era conhecido por seu valor estratégico. Os romanos o batizaram de Oceanus Britannicus e, já sob poder do Império Romano, suas águas desempenhavam um papel vital nas expedições entre a Gália (atual França) e a Britânia (atual Inglaterra). 

Em 55 a.C., antes mesmo de iniciar oficialmente as Guerras Gálicas (58-50 a.C.), o imperador romano Júlio César, decidido a expandir seu domínio, lançou-se no Canal da Mancha com 80 navios e mais de dez mil homens. Porém, ao cruzar o estreito, encontrou resistência do povo britânico, que dominava táticas de guerrilha e conhecia a região. O inverno rigoroso e o clima imprevisível, com ventos fortes e variações de temperatura, dificultaram a jornada romana, que não alcançou seus objetivos. No ano seguinte, César retornou com 800 navios e 27 mil homens, preparados para os desafios, e obteve a vitória.

Ao longo da Idade Média, o estreito assumiu papel de relevância para o audacioso duque Guilherme, da Normandia, conhecido como o Conquistador. Em 1066, ele se lançou ao mar com uma tropa, atravessando o Canal da Mancha com destino à Inglaterra, onde protagonizou a célebre Batalha de Hastings, um evento que não apenas transformou a história inglesa, mas mergulhou o país em uma era de domínio normando, esculpida à força. 

Nos séculos seguintes, o Canal da Mancha se tornaria um verdadeiro campo de batalhas, com ondas que testemunharam lutas entre ingleses e franceses, especialmente ao longo da Guerra dos Cem Anos (1337-1453), uma disputa feroz e interminável pelo trono da França após a morte de Carlos IV, que selou para sempre a rivalidade entre as duas coroas.

A importância do Canal da Mancha cresceu com o avanço da navegação e o florescimento dos impérios coloniais. No século XVIII, a supremacia naval britânica sobre essas águas foi um pilar essencial para a expansão e segurança do império inglês, garantindo rotas seguras para suas colônias e limitando o avanço de rivais europeus. Durante as Guerras Napoleônicas, o controle do Canal se tornou um trunfo estratégico para os britânicos, permitindo-lhes bloquear a França e proteger seu território insular. Mais tarde, nas Guerras Mundiais do século XX, o estreito revelou-se vital para as operações militares e logísticas, sendo o palco de embates decisivos e uma linha de defesa crítica.

Geologicamente, o Canal da Mancha começou a tomar forma há cerca de 450 mil anos, durante o Pleistoceno, também conhecido como Era do Gelo, que foi marcada por sucessivas glaciações e pela presença da megafauna do período Quaternário. Naquele tempo, o canal era uma ponte terrestre que ligava a Grã-Bretanha ao continente europeu, até que o degelo das calotas polares elevou os níveis dos oceanos, inundando e moldando profundamente a paisagem da região.

Uma das teorias mais aceitas para a criação do Canal envolve um evento cataclísmico ocorrido há cerca de 200 mil anos, quando a ruptura de uma barragem natural de gelo desencadeou uma imensa inundação, liberando volumes imensuráveis de água do Mar do Norte para o Oceano Atlântico. O fenômeno provocou uma violenta erosão, que esculpiu o canal ao longo dos milênios, formando falésias de calcário que hoje compõem as icônicas margens do Canal da Mancha, como as falésias de Dover, na Inglaterra, e as falésias de Cap Blanc-Nez, na França. Essas formações são marcos da paisagem natural e testemunhos da força geológica que transformaram a região em uma das áreas mais ilustres e históricas da Europa.

Atualmente, a travessia do Canal da Mancha se tornou um símbolo de crise humanitária à medida que milhares de imigrantes do Oriente Médio e do Norte da África se arriscam nessas águas em busca de segurança, fugindo de conflitos armados, perseguições, violações de direitos humanos e condições de vida insustentáveis. Elas enfrentam o canal como último recurso: o que já foi visto como uma barreira geográfica, agora é palco de tragédias e desespero para quem anseia por um futuro seguro. 

Infelizmente, o número real de vidas perdidas nessa travessia permanece incerto, tanto daqueles que tentam atravessar nadando quanto dos que enfrentam embarcações improvisadas correm sérios riscos, e muitas mortes acabam sem registro, com os corpos nunca encontrados.

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