Asas de Cera Russas 

História de uma nação que desafiou o esquema de antidoping mundial

Imagine ter asas para voar, fugir para longe, mas com duas possíveis condições: nem tão baixo, mas nem tão alto. Essa é a história de Ícaro, da mitologia Grega, filho de Dédalo, um engenhoso artesão e inventor que construiu asas feitas de penas de metal presas a uma moldura de couro por cera de abelha, para ambos fugirem do labirinto de Creta. 

A condição para que as asas não derretessem era, em hipótese nenhuma, chegar muito perto do sol, assim, Dédalo e Ícaro poderiam fugir para longe, sem que ninguém os achasse; mas para Ícaro, isso era pouco; ele queria mais, queria ver a sensação de estar o mais alto possível, perto do sol, um lugar que jamais alguém como ele estaria. Mas tudo tem um preço. Suas asas derreteram, e a sua queda no mar, foi inevitável; seu pai, nunca mais o viu, mesmo lamentando por isso, continuou sua fuga.

No documentário Ícaro, da Netflix, vencedor do 90º Oscar de Melhor Documentário Longa-Metragem de 2017, dirigido pelo cineasta americano Bryan Fogel – também diretor de The Dissident (2020) e do filme Procura-se a Mulher Perfeita (2012) – conduz uma investigação profunda sobre o doping no esporte. Fogel expõe o sistema de doping patrocinado pelo Estado russo, de Vladimir Putin revelando as complexas implicações éticas e morais no universo do esporte de alto rendimento. O longa-metragem tem duração de 121 minutos e foi produzido por Fogel, Dan Cogan, David Fialkow e Jim Swartz, com trilha sonora de Adam Peters.

 Fogel ouviu o som das vitórias desaparecendo, abafado pela revelação devastadora, pelos sussurros que se tornaram gritos, pelos nomes outrora celebrados que ecoaram como fraudes; as medalhas perderam seu brilho, os recordes foram desmoralizados e desacreditados, e o sonho de um ato heroico se transformaram em uma queda sem fim, precipitada pela verdade. O cineasta também faz a sua jornada ao contemplar as ruínas de um sistema que ajudou a expor. 

O que começou como uma curiosidade, um experimento para desafiar o sistema internacional de antidoping e provar que até os mais vigilantes podiam ser enganados, transformou-se em uma odisseia sombria e tortuosa, conduzida por um guia inesperado: Grigory Rodchenkov, químico e ex-chefe do laboratório nacional antidoping da Rússia, o Anti-Doping Center. Conhecido como o arquiteto de um dos maiores esquemas de doping da história moderna, ele esteve no centro de uma operação que ocorreu entre 2011 e 2015.

 Rodchenkov surge como uma figura trágica e complexa, um homem preso entre dois diferentes mundos: um cúmplice de um sistema corrupto e, ao mesmo tempo, um denunciante que carrega consigo o peso de suas próprias transgressões. Ele é, ao mesmo tempo, o arquiteto do voo e o coveiro da esperança russa, é através dos olhos de Fogel que começamos a enxergar a verdadeira extensão da corrupção que acomete e prolifera o esporte, isso nos leva a questionar se a Rússia é realmente a única culpada desse esquema, ou se está envolvida em uma Guerra Fria esportiva entre potências, na qual, quem esconde melhor seus segredos acaba vencendo.

Operando sob a supervisão e ordens do presidente Vladimir Putin e do então Ministro dos Esportes da Rússia, Vitaly Mutko, o esquema de doping conduzido por Rodchenkov funcionava como uma máquina meticulosa de manipulação e fraude. Com o Cocktail Duchesse — uma combinação de mistura de trembolona, ​​oxandrolona e metenolona —, o químico liderava um processo de troca de amostras de urina contaminadas por outras limpas, escapando dos controles mais rigorosos. Esse aparato de falsificação, respaldado e incentivado pelo governo russo, buscava assegurar a supremacia dos atletas russos no cenário esportivo global, especialmente nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2014, em Sochi. 

Para muitos, na essência, esse caso não é uma novidade: é como dito no livro 1984 de George Orwell, livro e autor aclamado por Rodchenkov, “Ver aquilo que temos diante do nariz requer uma luta constante”.  

Fogel e Rodchenkov se conheciam antes mesmo de todas as acusações virem à tona; desde o início, o objetivo era desafiar o sistema de antidoping mundial, com o ex-chefe do Anti-doping Center, como peça-chave para ajudar o cineasta a provar que, mesmo no melhor laboratório do mundo, um profissional astuto poderia driblar as normas. Durante o experimento, os dois desenvolvem uma amizade próxima, e Rodchenkov chegou a viajar aos Estados Unidos para coletar amostras de urina de Fogel. No entanto, o ponto de virada ocorre quando Rodchenkov é investigado pela Agência Mundial Antidoping (WADA) e passa a ser ameaçado e perseguido pelo governo russo, por seu papel em um programa de doping patrocinado pelo próprio Estado. Percebendo o perigo, Fogel ajuda Rodchenkov a fugir para os EUA, onde ele colabora com autoridades americanas, incluindo o FBI e o Jornal New York Times, para revelar o esquema de doping russo. A revelação culmina em uma série de investigações internacionais e na entrada de Rodchenkov no programa de proteção a testemunhas.

Ícaro tece uma narrativa cinematográfica rica e multifacetada, onde cada imagem e técnica se entrelaçam para criar uma atmosfera de revelação e suspense. O documentário se utiliza de uma apurada linguagem jornalística investigativa, às vezes com um teor sensacionalista, que desvela o esquema de doping patrocinado pelo Estado russo, entrelaçando entrevistas incisivas e imagens de arquivo com filmagens ao vivo, garantindo um toque de veracidade e urgência. A direção, por vezes, flerta com os códigos da espionagem, imergindo o espectador em um jogo de tensões e segredos, especialmente nas sequências que acompanham Rodchenkov; o estilo visual, por sua vez, intensifica o drama, moldando a narrativa em torno dos momentos decisivos — como a fuga de Rodchenkov e as revelações que alteram o curso do esporte — e conferindo ao documentário uma carga emocional palpável.

Assim, ao final de tudo, quando a queda é inevitável, Ícaro nos leva a uma reflexão profunda sobre quem realmente caiu. O roteiro propõe a pergunta: foram os atletas, cujas glórias se dissolveram como sombras irreparáveis? Foram as instituições, que falharam em proteger aquilo que juraram defender? Ou fomos nós, espectadores, cúmplices na construção de um mito que jamais poderia se sustentar? Após assistir ao documentário, torna-se impossível não questionar o impacto desse escândalo, não apenas no esporte, mas também na forma como compreendemos a integridade das competições. A obra é essencial, mas nos deixa com a amarga constatação de que a verdadeira queda vai além dos envolvidos diretamente no caso — ela atinge todos nós.

A queda de Ícaro, capturada com tanta precisão e desesperança, não é apenas a queda do esporte, mas a queda de um ideal, de uma crença na pureza e na honra que, como as asas de cera, se derrete sob o calor da verdade. 

O documentário que, ao começar pelo voo destemido, termina na inevitável e dolorosa queda. Uma que não é apenas de corpos, mas de almas ambiciosas e desobedientes; uma queda que nos deixa olhando para os céus, onde um dia acreditamos que algo puro poderia voar, apenas para perceber que, desde o início, estávamos todos destinados a despencar, assim como Ícaro. 

Ao ganhar o prêmio mais importante do cinema mundial, Fogel o dedicou para  Rodchenkov, ao ser questionado sobre as ameaças que o ex-chefe do Laboratório de Moscou vinha enfrentando, mesmo sob o sistema de proteção a testemunhas dos EUA, Fogel explicou que as ameaças eram graves e que a mídia e o governo russo estavam empenhados em desacreditar Rodchenkov, solicitando sua extradição. O cineasta também afirmou que o atual presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), Thomas Bach, deveria renunciar, alegando que a organização é corrupta e comprometida por fraudes, sem comprometimento e sem transparência e integridade.A produção se destaca por sua narrativa cativante, marcada por mudanças inesperadas no roteiro. O que começa como uma experiência pessoal e uma investigação sobre doping rapidamente se transforma em algo muito mais sombrio. O documentário segue uma linha similar à popularizada por Super Size Me, funcionando como um espelho distorcido. Enquanto, no longa-metragem de Morgan Spurlock, o documentarista usa seu próprio corpo para testar os limites de uma dieta baseada em fast food, aqui, Fogel desafia os limites do sistema antidoping — e, desta vez, não é o corpo que sofre, mas a alma. Longe de oferecer uma crítica previsível, o documentário evolui para uma jornada intensa, em que o cineasta e seu aliado denunciante são arrastados para um jogo mortal de segredos e perseguições. A narrativa expõe o custo imenso e solitário de enfrentar uma máquina estatal, entregando uma obra poderosa e perturbadora.

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