Alvo invisível  

Assim como uma deusa em sua missão, Georgia Furquim desafia os preconceitos do esporte, quebrando barreiras com a força de sua determinação e a coragem de uma campeã

Os mortais observam a Ártemis com inveja, acreditando que podem rivalizar com sua destreza e conexão com a natureza. O orgulho os ilude e, enquanto tentam desmerecer a sua força, esquecem que ela nasceu para trazer luz e segurança aos caçadores e mortais quando houvesse escuridão e perigo. Assim como a deusa da mitologia grega é subestimada por sua força, Georgia Furquim, a primeira mulher a se classificar para as Olimpíadas no tiro skeet, enfrenta um ambiente onde sua habilidade é frequentemente ofuscada por preconceitos. Ártemis não foi a deusa que eles tinham em mente para conquistar seu lugar na caça, assim como Georgia não é apenas uma atleta em um mundo predominantemente masculino. O problema, para eles, é que ambas já eram destinadas ao sucesso.

Tudo começou com um convite simples para uma viagem familiar. Georgia ainda era criança e não tinha ideia de que aquele passeio a tiraria de casa e a levaria a um novo mundo: o mundo olímpico. Ela foi acompanhar o tio, e, sem grandes expectativas, acabou se apaixonando por um esporte ao ar livre, cercado de vegetação e com um ambiente gostoso. Quando ela cresceu e desenvolveu sua parte física para praticar a atividade do tiro skeet, não pensou duas vezes para experimentar; segundo ela, a ideia de quebrar pratinhos era muito legal. Muito mais que uma paixão, Georgia já havia sido observada, todos ao seu redor perceberam que ela tinha talento para o esporte. 

Georgia fez história ao se tornar a primeira mulher brasileira a conquistar uma vaga olímpica no tiro skeet. Sua classificação para as Olimpíadas de Paris 2024 marcou um feito inédito, pois desde Londres 2012, nenhum outro atleta havia alcançado esse nível de desempenho. Antes de Georgia, Daniela Carraro havia competido na mesma modalidade nas Olimpíadas do Rio 2016, mas em outra condição: a vaga foi concedida ao Brasil por ser o país sede.

Quais foram os principais desafios que você enfrentou ao buscar a vaga olímpica?

Muito preconceito e muita inveja. As pessoas que coordenam são ex-atletas e atletas, inclusive, que estão competindo, mas não na minha modalidade e categoria. Eu não era a pessoa que eles tinham em mente para conquistar a vaga e nem na minha modalidade, no feminino. As pessoas (do esporte e das instituições) querem que o esporte cresça, mas não têm o mínimo de maturidade para lidar com o crescimento ou o possível crescimento (das modalidades e categorias). Pode ser que eu não estivesse preparada para estar em uma olimpíada. Acho que eu não estava preparada. E vou te dizer, nenhum atleta está preparado. A gente trabalha para isso, mas não significa que a pessoa esteja pronta e vou te dizer, as instituições também não estão. Eles também trabalham para a vaga (olímpica), mas eles não estão preparados para administrar.

Desde que participou das Olimpíadas de Paris, você tem observado alguma mudança no tiro skeet, para as meninas?

Na prática, a comunicação vem mudando. Eu vejo que algumas meninas se tornam minhas seguidoras (nas redes sociais), e mandam uma mensagenzinha para saber do esporte. Elas acham que eu não vou responder, mas eu respondo sempre. Porque eu quero deixar bem claro que tenho uma comunicação com as mulheres, para que elas se sintam à vontade para vir falar comigo. Meu ambiente é muito masculino. E não é uma coisa lá muito saudável, entendeu? Mesmo que tu conquiste alguma coisa, é muito difícil o reconhecimento vir. É uma coisa mais de proteção também, sabe? Enquanto nós (mulheres) não tivermos um posicionamento forte, a gente não vai ser respeitada em coisas muito simples, como uma premiação numa prova. Todas as premiações são masculinas (no tiro esportivo), em todas as categorias, mas não tem uma única do feminino, entendeu? Então, é uma coisa que parece ser simples, parece óbvia, mas ainda assim precisa ser discutida. Como eu consegui essa visibilidade, eu quero, sim, reforçar esse papel e essa imagem da mulher frente a esse ambiente que é tão masculino.

Essa situação acontece em outros países ou só no Brasil?

É no Brasil. O tiro esportivo, nas Américas, em geral, tem essa discrepância de participantes, essa diferença entre gêneros. Nós (mulheres) não chegamos a 1% do número de participantes nas provas, em média. Nas últimas provas que eu fiz (Campeonato Brasileiro) mudou um pouco a proporção. Eram 70 homens e 10 mulheres, não teve um aumento das mulheres, mas teve uma diminuição dos homens. Então, quando a métrica muda, normalmente é no número de homens, porque as mulheres são sempre as mesmas. Não há mudanças, e isso é problemático. É problemático não ter renovação. 

Qual foi o momento em que você percebeu que tinha potencial para ser uma atleta de alto rendimento?

Não tenho um momento específico, mas a coisa fica séria no momento em que a gente começa a ser convocada para um campeonato super importante. Então, as coisas acontecem meio rápido demais. Apesar de você querer, daqui a pouco tu está no evento e não se dá conta que aquele evento é o que tu queria lá no começo. As coisas vão acontecendo, tu vai participando das provas, vai competindo, vai treinando e, daqui a pouco, tu está numa Olimpíada. Acredito que eu estou numa Olimpíada quando eu pisar lá. E, quando eu pisei lá, eu vou dizer: meu Deus, é de verdade? Até arrepia.

É possível viver exclusivamente do tiro esportivo no Brasil?

No Brasil, não tem como tu viver do esporte. O tiro esportivo não tem a visibilidade e o retorno financeiro que propicie ao atleta viver disso. Então, todo mundo estuda e trabalha para que a parte financeira esteja em ordem. A gente lida com isso de uma forma um pouco mais delicada, em comparação com outros esportes. Temos a nossa vida e isso (o tiro) é um complemento, digamos, que é um hobby de luxo, entendeu? Sempre o pessoal tem alguma atividade e isso entra como uma atividade paralela, que a gente ama muito, porque senão não valeria a pena.

O que diferencia os atletas brasileiros dos de outros países em competições internacionais?

Vários pontos, desde a parte financeira de infraestrutura e apoio até a identidade dos atletas. Por exemplo, focando no lado mental, o Americano tem uma autoestima que eu nunca vi na vida. Quem convive com americano sabe que aqueles caras não “deitam para ninguém”, isso é uma coisa incrível. Se o americano entra em uma final, ele não sai sem uma medalha de lá. A não ser que de um erro, um “bug na matrix”, e é uma questão totalmente mental. não é que eles tem uma técnica melhor que a minha. É que eles têm o mental muito forte e isso é uma construção desde a infância, nas escolas. A identidade é muito importante pro atleta, os EUA sabem disso. Mas nós não temos isso no Brasil.

Qual é a consequência, para o brasileiro, de não ter identidade? 

A consequência é que não estamos preparados mentalmente. É como se dissessem que temos ‘síndrome de vira-lata’. Achamos que somos piores, inconscientemente. O nome Estados Unidos chega muito antes e eles já são temidos pelo nome do país. Eles sabem disso. Sabem quem são e de onde vieram. Isso é um impacto que, se o Brasil começar a construir hoje, vai levar décadas para ver resultados, porque isso não é natural para nós, mas para eles sim. E é um baita de um acerto investir nisso.

Quais as diferenças de um campeonato dentro e fora do Brasil? 

Os campeonatos dentro do Brasil são mais cômodos. Por serem poucas as mulheres (competindo), eu só enfrento dificuldades quando estou fora (do Brasil). Então acaba que eu tô com aquela personalidade de menina mimada, sabe? Porque eu não tenho frustração aqui dentro (do Brasil). Eu vou lá ganhar meu troféu e pronto. Quando eu faço um resultado bom, eu não tenho adversárias para comparar. E é da natureza humana comparar. A comparação é um exercício do ego, de ‘tomar porrada’, mas eu não tenho isso aqui (no Brasil). E quando eu ‘tomo porrada’ é só lá fora, mas são poucas as vezes. Então, como atleta, como competidora, apesar de eu ter muitas competições, eu tenho poucas competições que realmente me cobrem um posicionamento maduro como atleta. Nós estamos em busca de cenários onde eu consiga trabalhar minha maturidade e sair da zona de conforto. 

Como você reagiu quando recebeu a notícia que estaria nas Olimpíadas de Paris 2024? 

Chorei. Chorei e chorei, mas mantive a calma. Quando as pessoas vieram me cumprimentar, eu fiquei pensando: “nada é garantido, vamos devagarinho, não vamos nos iludir”. Lógico, me emocionei na hora e liguei para o meu pai e minha mãe. Todo mundo comemora, chora, muitas lágrimas escorrem, é uma sensação de que conseguimos, mas sempre com um pezinho atrás. A gente acredita e se emociona, mas se emociona com o pezinho atrás. Se porventura acontecer alguma coisa que a gente não vai, a gente já está preparado também para o baque não ser muito grande. Quando a gente gera uma expectativa muito gigante, como uma Olimpíada, pode ser bem dolorido não ir. Apesar da gente se preparar mentalmente por uma série de fatores, tem coisas que não digerimos e muitas vezes não tem volta

E você já pensa nos próximos Jogos Olímpicos?

Antes de chegar ao Brasil (de Paris), eu já estava pensando nas próximas (Olimpíadas). Achei que iria para lá e acharia que é uma prova como qualquer outra. Essa era a imagem que eu pensei quando estava indo. Mas não, é muito interessante. É uma mística em volta daquilo que eu não consigo entender. É muito mais emocionante. Tu vê que todo mundo muda estando lá (Olimpíadas). Os outros atletas também têm um comportamento diferente. Parece que aquilo ali é 10 vezes mais importante do que qualquer coisa que tu considera importante. É muito interessante.  Mesmo os atletas não querendo dar um valor muito maior do que é de fato para que as coisas não se tornem mais difíceis ainda, elas automaticamente se tornam muito mais difíceis. 

Já tem planos reais para a próxima Olimpíadas? – Ciça não gostou, acha que devemos tirar? podemos colocar como um olho em algum lugar algo como: “Eu não tinha o sonho olímpico. Eu não fui uma atleta de gerar expectativas. até eu conquistar a vaga era inviável”Eu digo, meu Deus, eu já estou fazendo planos reais para a próxima Olimpíada, sabe? E isso é uma coisa que até eu conquistar a vaga era inviável. Eu não verbalizei que eu queria chegar numa Olimpíada. Eu não tinha o sonho olímpico. Eu não fui uma atleta de gerar expectativas para não me frustrar com aquele rolê todo. Então, quando aconteceu, foi interessante esse fenômeno do tipo, tá, aconteceu, e agora? O que a gente faz? Como é que a gente lida com isso?

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