As tradições que celebram a força tornaram os lutadores em sombras de suas próprias batalhas
Correr, pedalar e nadar sob o peso da desidratação; submeter-se ao calor abrasador da sauna, como se fosse um caldeirão de sacrifício, vestindo roupas emborrachadas que retêm o calor e intensificam cada gota de suor; utilizar, a cada oportunidade, diuréticos – substâncias que aumenta a produção de urina, a fim de reduzir líquidos corporais – e seguir uma dieta hipocalórica severa. Até onde você iria para alcançar seu objetivo? Em um mundo onde o sonho é o combustível, você faria tudo isso em nome da sua paixão?
A cada grama perdida, uma série de desordens no seu corpo acontece: desequilíbrio hormonal e hidroeletrolítico, imunossupressão, alteração do sistema cardiovascular, diminuição da função renal, atrasos no crescimento e desenvolvimentos, depressão, isolamento e estado de confusão mental.
Nos esportes de combate, onde o corte de peso é uma prática comum, e muitas vezes extremo, corpo e mente se enfrentam em busca de superação. Esses atletas, que se submetem a rigorosos regimes para atingir categorias de peso específicas, testam seus limites e habilidades em modalidades como o boxe, com socos calculados que desafiam a resistência; o judô, onde quedas e imobilizações se tornam arte; e o taekwondo, onde chutes almejam o equilíbrio perfeito entre velocidade e impacto. No wrestling, essa modalidade que combina força e técnica, o corpo se torna alavanca e instrumento de domínio, permitindo uma variedade de estratégias para derrubar e controlar o oponente. Nos Jogos Olímpicos, essas modalidades ganham espaço e se encontram no palco global — uma arena onde técnicas ancestrais se reinventam e o combate se torna espetáculo.
A nutricionista esportiva e integrativa do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), Gisele Lemos, explica que, para o corte de peso, é fundamental que os especialistas da área de nutrição mantenham contato constante com os atletas, respeitando a personalidade e a cultura da modalidade: “Alguns querem falar o tempo inteiro, tem viagem internacional que recebo mensagens todos os dias. Eles falam: hoje eu fiz isso, vou comer isso, vou fazer aquilo. Eu até gosto que me procure com frequência, porque eu estou sabendo que ele está saudável. Está usando uma estratégia saudável.”
Para esta perda de peso, a American College of Sports Medicine (ACSM) explica que os atletas utilizam o cronograma de Perda Rápida de Peso (PRP), que dura, em média, cinco dias, adotando esse hábito antes das competições e repetindo-o mais de 100 vezes ao longo de suas carreiras. O processo geralmente começa com uma restrição alimentar, onde os atletas diminuem drasticamente a ingestão de calorias e carboidratos, forçando o corpo a queimar reservas de glicogênio e, consequentemente, perder peso. Após isso, na fase de exercícios intensivos, eles realizam atividades físicas extenuantes, como corridas e treinos pesados, muitas vezes usando roupas plásticas para aumentar a sudorese, a fim de perder ainda mais líquidos. A fase final, de desidratação, ocorre nas últimas 24 horas antes da pesagem, onde os atletas restringem completamente a ingestão de líquidos e podem recorrer ao uso de saunas e diuréticos para eliminar o máximo de água possível. Após a pesagem, a reidratação e reposição de glicogênio são essenciais para que o atleta recupere o peso perdido rapidamente e esteja apto para competir, sendo essa recuperação vital para minimizar os efeitos negativos dessa prática intensa. No entanto, esse processo de perda de peso rápida pode comprometer a saúde e o desempenho, afetando fatores como resistência, força e a capacidade de tomar decisões durante a competição.
A ACSM revelou que 89,9% dos judocas de elite e 83% dos taekwondistas utilizam esse método severo de perda de peso, enquanto aproximadamente 53% dos wrestlers adotam a mesma prática. Por outro lado, o MMA é o líder nas práticas de PRP: 90% dos atletas cortam peso, para se encaixarem em uma categoria abaixo do peso que costumam estar durante as fases de treinamento. Além disso, um estudo realizado em 1999, que até hoje é referência para cientistas e organizações esportivas, revela no Jornal Functional Morphology and Kinesiology – periódico científico que publica pesquisas sobre o corpo humano e movimento – que o atleta pode perder em média 10% de gordura corporal antes da sua pesagem. Para ter uma noção prática, um homem saudável deve ter, no mínimo, um limite de gordura corporal de 7% e, para a mulher, de 12%. O estudo sugere que os atletas sempre ficam abaixo desses limites saudáveis.
Raízes antigas
Os esportes de combate, com suas raízes históricas profundas e antigas, emergem das sombras das primeiras civilizações, onde o ato de lutar vai além da mera competição, entrelaçando-se com a sobrevivência, os rituais religiosos e as demonstrações de força. Esses esportes não são apenas batalhas físicas, mas expressões da própria condição humana, um legado que ressoa ao longo dos séculos.
No Egito Antigo, as paredes das tumbas revelam pinturas que capturam a essência do pugilato (antigo boxe) e dos estilos de wrestling, enquanto na Mesopotâmia, guerreiros em posição de combate simbolizam não apenas habilidade, mas o poder indomável e a coragem inabalável. Essas práticas se erguem como representações de um mundo em que a luta era tanto um meio de defesa quanto um ritual sagrado, refletindo a bravura dos guerreiros que enfrentaram adversidades em busca de honra e respeito.
Nas arenas da Grécia Antiga, os esportes de combate floresceram como expressão da busca pela excelência humana, atingindo uma nova dimensão com a inclusão, nos Jogos Olímpicos, do pancrácio — modalidade que mesclava boxe com luta livre, quase sem nenhuma regra. Para os gregos, o pancrácio não era apenas um teste de força, mas uma prova de astúcia, respeito, disciplina e autocontrole — qualidades reverenciadas em sua cultura. Modalidades como Judô, Kendo e o sumo surgiram no Japão feudal por samurais, ligadas a uma filosofia de respeito e honestidade.
Séculos após, as lutas de combate saem de seus berços a caminho do ocidente. No século XIX, as organizações do mundo todo se organizaram para implementar regras para competições, sendo elas de níveis regionais até mundiais; é nesse contexto que as categorias de peso se tornam uma obrigatoriedade, garantindo maior proteção e equilíbrio nas lutas. A intenção é valorizar a técnica sobre a força bruta, permitindo que atletas menores e mais leves compitam em condições mais justas, sem ficarem em desvantagem.
Casos extremos
Embora as categorias de peso tenham sido criadas para proteger e equilibrar as disputas, na prática, elas impõem um preço alto: o desgaste físico e mental dos atletas, pressionados a se desidratar e a restringir, ao máximo, seu consumo calórico, enfrentando o corte de peso excessivo.
No dia 26 de setembro de 2013, o universo do MMA brasileiro foi tragicamente sacudido por uma dor que ecoaria nas almas de lutadores e fãs. Leandro Caetano de Souza, carinhosamente conhecido como Feijão, faleceu aos 26 anos, vítima de um AVC hemorrágico enquanto se submetia à sauna, após tomar diuréticos. Na véspera de uma luta que prometia ser seu momento de consagração, a atmosfera pulsava com a eletricidade da expectativa e da adrenalina. No entanto, nos bastidores, sombras de uma verdade sombria se escondiam: o atleta lutava para perder 15 quilos em 15 dias, arriscando não apenas sua saúde, mas sua vida. A notícia de sua morte não apenas chocou, mas também ressoou como um grito de alerta em toda a comunidade dos esportes de combate.
Não foi a primeira vez, nem a última, que atletas sofreram consequências irreparáveis devido a esta prática; inclusive, em 1997, três wrestlers de 19, 21 e 22 anos, que estavam competindo na National Collegiate Athletic Association (NCAA), morreram, por serem submetidos a PRP por um período de 10 a 13 semanas, todos por parada cardiorespiratória.
O corte de peso, antes tratado como um ritual quase sagrado, agora é visto como um vilão cruel e implacável. A prática que prometia força e vantagem, tornou-se um tópico de discussão global, levantando questões sobre a ética e a segurança no esporte. Atualmente, as modalidades vêm implementando modificações para evitar mudanças drásticas de peso; entretanto, as alterações não são totalmente seguras e apresentam lacunas que permitem que os atletas continuem utilizando essas técnicas.
Medidas de segurança
A Federação Internacional de MMA (IMMAF) aumentou e ajustou o número de categorias, tanto para mulheres quanto para homens, a fim de reduzir a diferença de peso discrepante entre os atletas, mas sem estabelecer limitações que proíbam mudanças drásticas de peso.
Outra federação que também fez mudanças foi a California State Athletic Commission (CSAC), que não permite a efetividade da luta se o atleta estiver com 15% a mais de peso no dia da luta em comparação com o dia da pesagem. Isso pode parecer responsável, porém, estudos da California State University, Fullerton, alertam que lutadores que perdem mais de 4% de seu peso corporal podem ter sua capacidade cognitiva prejudicada, enfrentando problemas de atenção que podem resultar em erros básicos, levando à derrota e a lesões irreversíveis. Ou seja, o limite estipulado pela CSAC está 11% acima do que é realmente saudável.
Para a nutricionista Gisele Lemos, a ciência não vê o corte de peso como uma prática maléfica ao corpo do atleta, desde que acompanhado com profissionais da saúde, e dentro dos padrões da literatura: “O processo não é, necessariamente, baseado em desidratação. Quando você fala desidratação, a gente deixa aí para os dois ou o último dia, o dia anterior, antes da pesagem oficial. Então, o ideal é apenas 1,5% (do peso ideal) por desidratação, só se for realmente necessário”, explica.
Após a morte do lutador chinês Yang Jian Bing, em 2005, devido a complicações relacionadas ao seu corte de peso, a ONE Championship, organização de esportes de combate da Ásia, implementou mudanças significativas em suas categorias de peso. A partir desse incidente, a organização aumentou os limites de peso, por categoria, e instituiu um protocolo de segurança que inclui três checagens durante a semana da luta, com o objetivo de monitorar o peso e a hidratação dos atletas. Essas medidas visam proteger a saúde dos lutadores e garantir competições mais seguras.
Comparado a outros esportes, como o judô, a regra internacional implementada pela Federação Internacional de Judô (IJF) prevê duas pesagens: uma no dia anterior à luta e outra no dia da competição. O atleta não pode ultrapassar 5% a mais do que o limite da categoria de peso no dia da competição. “A pesagem randômica no dia da competição é para evitar que, por exemplo, um atleta que tenha desidratado muito, não consiga segurar esse peso para o segundo dia, porque ele vai ter que se hidratar”, afirma Gisele.
O Wrestling adotou uma nova abordagem para a pesagem, realizando-a no dia da competição, a fim de evitar grande desidratação. Giullia Penalber, que ficou em quinto lugar nas Olimpíadas de Paris e é a única representante brasileira na modalidade, compartilhou sua experiência com diferentes tipos de pesagem. Ela competiu no judô até 2010, mas fez a transição para o Wrestling após a IJF proibir o uso da “catada de perna”, seu principal golpe na modalidade. A atleta contou que, com a pesagem no dia anterior, o corte de peso era muito maior, e as pessoas tendiam a desidratar mais. “Eu vinha de uma categoria em que competia até 57 kg no judô, pesando no dia da luta. Quando mudei para o Wrestling, na mesma categoria, percebi que as meninas eram muito maiores do que eu. Para ter uma disputa justa de força e infraestrutura, foi recomendado que eu baixasse de peso.” A partir disso, Giullia decidiu baixar sua categoria para até 53 kg.
A atleta nos contou que se programa muito bem para o corte de peso em paralelo com os treinamentos, que precisam estar alinhados: “A gente se programa para isso, é a semana feita para corte de peso, então o volume de treino diminui, a intensidade do treino diminui e o volume vai diminuindo no decorrer da semana também”, ela acrescentou que para se preparar para o campeonato, ela enfatiza a dieta, para chegar o mais perto possível do peso, e próximo ao campeonato ela foca em suar e desidratar, para baixar o peso até o necessário.
A nutricionista do COB explicou que a maior parte da perda de peso deve ser realizada antes da desidratação, para evitar a necessidade de utilizar esse método para grandes perdas, ressaltando que isso pode contribuir significativamente para o bem-estar mental do atleta, “Não é fácil, porque o atleta tem fome. Então, vai muito da perseverança. Normalmente, ele (o atleta) responde bem, porque ele quer ser ajudado. Algumas vezes, tem alteração de humor. Porque, você imagina, você tem uma restrição calórica muito grande, está vinculada a comportamento emocional, alimentar.”
Mesmo que a opinião dos telespectadores e que as instituições estejam começando a ver o corte de peso como um problema real dos esportes de combate, tanto a nutricionista quanto a atleta acreditam que não é possível, e nem deveria ter algo que proíba totalmente essa prática, mas que seja de uma forma dentro dos padrões que a ciência e a literatura aceitem, sem que o atletas tenham malefícios à saúde. “Não tem como proibir, porque imagina, como eles vão fazer uma regra de proibição se eles não conseguem visualizar o que o atleta está fazendo com quatro paredes? Então, não tem como comprovar se o atleta perdeu ou não peso”, explica Gisele, enquanto Giullia finaliza dizendo que o corte de peso é algo natural, e que todo esporte de alto rendimento tem danos colaterais, “somos adultos e lutamos por performance”, ela adiciona que para atletas da base, não faz sentido abaixar o peso, já que não são adultos para tomarem suas decisões baseadas da dimensão do que é o corte de peso.